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18/11/2025 - 11h33

A cultura da não visão: por que a cegueira deliberada é o novo risco corporativo

Empresa que escolhe ignorar suas fraquezas, trata quem faz algum alerta como problema, diz especialista

 

Por Patricia Punder*

 

Há uma característica silenciosa que separa organizações resilientes de organizações vulneráveis, que é a capacidade, ou incapacidade, de ver a si mesmas com clareza antes que o mercado as veja. Crises reputacionais graves raramente decorrem de eventos inesperados, falhas técnicas pontuais ou acidentes isolados. Elas são, quase sempre, o estágio final de um processo que começa muito antes, no qual lideranças escolhem não enxergar riscos que já estavam evidentes e que, em algum momento, exigiriam coragem para serem enfrentados.

 

Esse fenômeno é conhecido como cegueira deliberada e ele não é exceção, não é ausência de informação, nem incapacidade técnica. Ele se instala quando a organização percebe os riscos e ainda assim escolhe ignorá-los. Não por desconhecimento, mas por conveniência, ver implicaria admitir incoerências, rever decisões já comunicadas, refazer posicionamentos, enfrentar tensões internas ou abrir espaço para conflito estratégico. E conflito, no mundo corporativo, costuma ser entendido como ameaça, não como instrumento de clareza.

 

Quando a cultura interna aprende que levantar riscos atrapalha o andamento “harmonioso” das coisas, quem alerta começa a ser tratado como problema. Não porque esteja errado, mas porque sua visão incomoda. Esse incômodo tem um custo político. E nas empresas, potencialmente a política pesa mais do que diagnóstico.

 

Não é preciso que haja punição explícita para que um ambiente se torne avesso ao questionamento. Basta o silêncio em torno do alerta, o olhar de desinteresse na reunião, a promoção que vai para outro perfil mais “fluido”. Em pouco tempo, a empresa aprende, coletivamente, que é melhor não ver. Quando ver é perigoso, ninguém vê. E quando ninguém vê, a crise já começou, apenas ainda não se tornou pública.

 

A crise, ao contrário do que parece, não se inicia quando estoura. Ela apenas se torna visível quando não há mais como ocultar o desalinhamento entre o que a empresa diz e o que ela faz. Antes disso, ela se fortaleceu em silêncio, expandindo-se a partir de uma série de pequenas negociações internas com a realidade.

 

É sempre assim: primeiro, se ajusta uma afirmação para que fique mais bonita; depois, se reduz a exigência de comprovação; mais tarde, se flexibiliza uma validação; finalmente, se confunde impacto com evidência. Quando o discurso se afasta demais da prática, a reputação deixa de ser um reflexo e passa a ser uma construção. E tudo que é construído sem base, um dia cede.

 

Executivos não ignoram sinais por ingenuidade ou descuido. Eles o fazem porque enxergar exige enfrentar. Para reconhecer um risco relevante, a liderança precisaria admitir que decisões anteriores talvez tenham sido insuficientes; rever processos, prioridades e compromissos públicos; redistribuir responsabilidades internamente; afetar metas, cronogramas e indicadores que sustentam bônus e prestígio; enfrentar resistência de áreas poderosas; e em último nível, dar escala formal a algo que, até então, era apenas incômodo.

 

Em organizações onde a cultura é orientada a não produzir ruído, aquilo que ameaça a imagem é contido antes mesmo de ser analisado. A mensagem implícita é clara: preservar a narrativa importa mais do que preservar a realidade. E é assim que quem vê antes é silenciado antes. Não porque esteja errado, mas porque está certo demais, cedo demais.

 

Esse processo envia um recado claro a toda a empresa, em que ver é perigoso. Melhor não ver. E quando uma organização perde sua capacidade de ver a si mesma, ela perde sua capacidade de se corrigir. Uma empresa que não corrige falhas internamente será corrigida externamente e essa correção tem o nome de crise.

 

Contrariando a percepção pública, a crise não começa quando aparece. A crise começa quando deixa de ser possível não ver.

 

Enquanto o problema permanece restrito ao espaço interno, a empresa controla a narrativa, interpreta, contextualiza e relativiza. Mas quando um agente externo, como cliente, imprensa, investidor, regulador, concorrente ou opinião pública, enxerga o desalinhamento antes da organização corrigi-lo, o controle da narrativa se rompe.

 

E quando a empresa perde o controle da interpretação sobre si, ela perde poder. A crise é, portanto, um colapso de interpretação. Não é uma falha operacional isolada. É a revelação pública de uma incoerência que já existia.

 

Organizações maduras e éticas escolhem ver. E ver não é um gesto técnico, é um gesto de liderança. Ver exige:

 

- Colocar a realidade acima da narrativa;

- Dar autoridade real ao compliance e ao jurídico;

- Vincular recompensas à integridade, não apenas ao resultado;

- Criar canais onde alertar risco não penalize ou destrua carreiras;

- Permitir que áreas pensem em ritmo diferente, o ritmo da prevenção;

- Institucionalizar a capacidade de interromper um projeto quando necessário.

 

Ver é aceitar a vulnerabilidade como parte da força. Ver é trocar controle ilusório por responsabilidade real. Executivos que escolhem ver não estão sendo pessimistas, estão sendo responsáveis pelo futuro da empresa. Executivos que escolhem não ver, não estão evitando problemas, estão fabricando crises em atraso.

 

Crises reputacionais não destroem empresas. Elas apenas revelam aquilo que já estava acontecendo quando ninguém olhava. O colapso não está na exposição, está na distância entre o que se dizia e o que se fazia. A organização que escolhe não ver, está escolhendo a crise. A organização que escolhe silenciar quem vê, está escolhendo a crise mais profunda, a crise da verdade interna.

 

A pergunta mais estratégica que qualquer conselho, diretoria ou liderança pode fazer hoje é apenas uma: Estamos realmente preparados para ver o que já está aqui? Porque se não estivermos, o mundo corporativo verá primeiro.

 

E quando o mercado vê antes, não há narrativa que proteja, não há campanha que reconstrua e não há comunicação que sustente. Há apenas a realidade e o quanto fomos capazes de enxergá-la.

 

*Patricia Punder é advogada e CEO da Punder Advogados e especialista em compliance, LGPD e ESG

 

 

Foto: Divulgação/Punder